11/04/2021 – Direitos autorais
Necrofilia robótica da arte e próximos problemas jurídicos

Em seu disco “Televisão de Cachorro” de 1998, a banda Pato Fu gravou uma música chamada “A necrofilia da arte”. Nela, a banda analisa uma espécie de fenômeno social pelo qual surgem diversos fãs de determinado artista, logo após seu falecimento…explicando melhor…A expressão necrofilia significa algo como uma excitação decorrente do fato de ver uma pessoa morta. A necrofilia da arte então representaria um comportamento adotado por um N número de pessoas que passam a apreciar a arte de alguém, e se dizer fã, somente após sua morte, ao ponto deste comportamento em questão provocar dor e saudade, ainda que não houvesse ligação com tal artista, em vida.

Vamos imaginar, por exemplo, que ao momento do falecimento de Bob Marley, de repente apareceram vários fãs, tristes com a partida do artista, mesmo que não escutassem suas músicas quando o cantor estava vivo. Vamos imaginar então que um artista fictício chamado X não faça exatamente sucesso, e venha a morrer tendo seu falecimento divulgado nas mídias. Pela perspectiva da necrofilia da arte, logo após o evento morte, várias pessoas irão procurar saber quem foi X e procurar ter acesso à sua arte.

Ok, isto é um fenômeno social com possíveis diversas causas que não serão procuradas aqui neste texto, pois envolve uma série de expertises para explicá-lo. Mas com que então estou falando disto?

Recentemente saiu a notícia de que uma inteligência artificial criou uma nova música da banda Nirvana, tendo analisado os padrões de composição do falecido líder da banda, o Kurt Cobain. Tal notícia não envolve exatamente uma novidade, pois algo próximo disto foi feito com as obras de Rembrandt, cujas técnicas de pintura foram analisadas por algoritmos que, por sua vez, criaram aquela que poderia ser a próxima obra dele, conforme visto no microdocumentário “The Next Rembrandt”, disponível no youtube.

A notícia envolvendo Kurt Kobain provoca inquietações, pela possibilidade disto se tornar uma tendência, pela possibilidade de ocorrerem esforços para que as produções de determinados artistas não sejam encerradas, mesmo com seu falecimento. São inúmeras as potencialidades de exploração econômica envolvendo esta técnica de reprodução de padrões por meio das inteligências artificiais, em qualquer modalidade de arte e em qualquer mercado cultural, o que pode provocar a permanência artística de alguém, mesmo que este alguém já não esteja vivo. E não estamos falando de obras póstumas, que são lançadas após a morte da pessoa criadora, porém produzidas por ela em vida. Estamos falando na possibilidade da necrofilia da arte ser explorada, por causa dos avanços na inteligência robótica.

Isto envolve uma série de questões morais (não seria melhor deixarmos os mortos em paz e respeitarmos seu legado artístico?), de questões sociais (não seria melhor que investíssemos na capacidade criativa das IAs para oferecermos maior acesso à cultura e inclusão nos ambientes artísticos?) e de questões jurídicas (a música “de Kurt Cobain” criada pelos robôs está protegida por direitos autorais? E se sim, quem é o titular?).

Reparemos então que, se isto dos robôs criarem obras “fantasmagóricas” se confirmar como tendência a ser explorada economicamente, surgirão uma série de desafios ao sistema de direitos, pois novos problemas jurídicos deverão ser resolvidos, em especial aqueles envolvendo questões de propriedade intelectual. Como exemplo, temos o seguinte. Os familiares da pessoa falecida, Kurt Cobain, por exemplo, irão exigir a titularidade dos direitos sobre a obra. Já a empresa à qual pertence a inteligência artificial que criou a obra irá reivindicar sua propriedade intelectual. Os programadores, por sua vez, poderão alegar que foi por causa da programação que o robô chegou à criação, logo os direitos autorais lhes pertencem. E ainda vão chegar os que dão maior ênfase aos interesses públicos envolvidos e argumentar que as obras criadas por inteligências artificiais não deveriam ter proprietário, pois deveriam ir diretamente ao domínio público, para que possam ser usufruídas pela coletividade, em prol dos direitos fundamentais de acesso à cultura.

Todas as posturas envolvem argumentações jurídicas aparentemente coerentes. Com qual você mais se identifica?

Alexandre Saldanha

CCO - Diretor de conteúdo do PlacaMãe.Org. Doutor em Direito pela UFPE com ênfase em direitos autorais, culturais e cibercultura. Mestre em Direito pela UFPE. Professor do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP e da Universidade de Pernambuco - UPE.

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