05/11/2020 – Crianças e adolescentes
Atividade infantil no Youtube é trabalho? (YouTuber mirim)

Inicialmente, é importante falar sobre as transformações ligeiras a que a sociedade tem estado imersa. Traçar roteiros sobre o passo-a-passo do que é, como foi e como ficará o movimento virtual é algo que não se pode mensurar. O que se pode dizer é: é necessário estabelecer limites, regras e comportamentos. Trata-se de educação digital. Essa avalanche de informações, de novidades tecnológicas têm causado um êxtase que nem sempre tem trilhado o melhor dos rumos. A internet de fato causa um deslumbramento nas pessoas, principalmente nas crianças, que têm a sua frente uma infinidade de possibilidades de interação e atividades em seu cotidiano. Porém, é preciso observar bem essas infinidades e suas influências no desenvolvimento das crianças e adolescentes, pois, o espaço virtual traz, junto com o seu encantamento, as linhas de perigos, assim como também acontece na vida real. E, muitas vezes, parece transparecer uma segurança para os sujeitos, sejam os responsáveis ou filhos, que não traduz uma realidade.

Além disso, é importante frisar que o fato de transferir as atividades para o mundo digital não quer dizer o abandono das regras que regem o mundo presencial. É bem por aí que ocorrem enganos. Alguns têm pensado que as ações realizadas no mundo da internet não merecem atenção ou nem devem ser regradas, ao menos quando causam algum dano, aí vem logo o questionamento: e agora?

É preciso pensar sobre isso, e principalmente, sobre o que as crianças estão fazendo por aí. Nesse “por aí”, leia-se: na internet. O ordenamento jurídico brasileiro traz diversas previsões, proibições e com a inserção da tecnologia, as normas parecem cair em desuso. Na verdade, a prática parece negar a existência de tudo que está por trás da tela de um computador ou de um smartphone, ou melhor, ignora. Mas a atenção deve existir em qualquer situação, bem como também deve existir a aplicação das normas em todas as situações.

As crianças estão, cada vez mais cedo, utilizando as mídias digitais, redes sociais e tudo que envolve o aparelhado tecnológico e suas interações. Chegou-se na fase, inclusive, de monetizar essas ações. E mais: o deslumbramento tem causado o desprendimento acerca dos rigores que existiam se as mesmas ações fossem realizadas presencialmente. Atuações como as participações ou até mesmo criações de vídeos em Youtube têm trazido muitas inquietações. Primeiro: essas crianças estão sendo monitoradas por seus pais enquanto fazem uso dessas ferramentas? O controle ocorre tal qual ocorreria, caso estivessem fazendo um vídeo em uma emissora de TV ou fazendo um marketing de uma empresa? Essas seriam hipóteses de ações simples de um tempo não tão remoto e que agora se apresentam num formato um pouco diferente.

As participações em canais de Youtube têm gerado outros questionamentos, além da que envolve a cultura de proteção dos dados. Dentre tantas questões que podem ser geradas a partir do uso inadequado das redes sociais, tem-se o descumprimento das normas tradicionais de direito do trabalho, por exemplo. Uma criança que está com um canal aberto no Youtube, em que promove vídeos, e atrelado a isso, consegue patrocinadores, recebendo assim dinheiro pela sua ação, pode-se configurar um trabalho. Caso esse mesmo exemplo ocorresse em um ambiente físico, algumas regras precisam ser cumpridas para que haja o devido cuidado com as crianças e adolescentes no processo de seu desenvolvimento. Nesse sentido, quanto ao trabalho infantil, há o Estatuto da Criança e do Adolescente proibindo essa prática, bem como a Consolidação das Leis Trabalhistas, todos com base constitucional principiológica na dignidade da pessoa humana. Além das normas internas brasileiras, há ainda se falar na Convenção 138 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, bem como a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente que preveem também regras atinentes aos menores. Assim, a primeira regra que se deve observar é que o trabalho é proibido para o menor de 14 anos, acima dessa idade, será possível na condição de aprendiz. O trabalho artístico infantil somente poderá acontecer com autorização judicial, que observará as previsões da lei. Conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, há previsão de que para a criança participar de espetáculo público deverá haver um alvará ou uma portaria judicial que autorize.

Embora seja corriqueiro observar essas previsões normativas em apresentações físicas, não seria coerente equipará-las ao ambiente virtual? Um vídeo do Youtube ou até mesmo em outra mídia social em que se possa ter atividade lucrativa praticada por uma criança não poderiam ser equiparados a espetáculos públicos? Pois bem, hoje há uma mudança no ambiente, havendo a transferência de atividades para área virtual, e seguir as mesmas regras propostas outrora continuam sendo uma exigência. Isso porque não importa o espaço em que se pratica ou realiza um ato, os atos continuam acontecendo no ambiente virtual. Observa-se, porém, que a dinamicidade ocorrida no ambiente virtual traz uma diferença no processo para preenchimento dos rigores legais. Configurar o trabalho infantil no ambiente virtual tornou-se uma tarefa difícil, pois as práticas são feitas em outro formato, utilizando as plataformas digitais. Além disso, há de observar o desenvolvimento saudável da criança, a frequência escolar, bem como, a existência de acompanhamento psicológico que são pontos que não podem deixar de ser cumpridos quando se trata de trabalho do menor autorizado. Será que o mesmo rigor necessário é utilizado quando do uso das plataformas de produção de vídeos, por exemplo?

Não se fala apenas na questão de obtenção de lucro, para que fique configurado o trabalho infantil. Muitas vezes essa prática pode estar velada, pois o fato de não haver um pagamento direto, uma remuneração não descaracteriza o trabalho do menor, podendo haver uma promoção, divulgação de marcas e retribuição de benefícios que nem sempre fica representado através de dinheiro, podendo ser uma contraprestação indireta. Há várias questões que precisam ser avaliadas no contexto dessa sociedade funcionando no mundo virtual, que corrobora com a necessidade de fiscalização dos pais, mães e responsáveis. A sociedade, como um todo, tem responsabilidade, empresas também têm o papel de monitorar essas relações, trazendo um modo ativo no processo de restruturação da sociedade, a partir das novas formas de se relacionar.

Desse modo, o que é necessário lembrar é que não há a obrigatoriedade de haver uma formalização de emprego para que se tenha o trabalho infantil. Dizer que é necessário que haja horário de trabalho ou o referido pagamento para que se configure o trabalho, seria criar obstáculos para que se regulamente e proteja essas situações que têm estado no cotidiano das crianças e adolescentes. Sobre esse tema, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 4801/2020[1] que busca obrigar as redes sociais a publicarem alertas em suas páginas sobre trabalho infantil. Trata-se de uma alternativa que possibilita ampliar o combate ao trabalho infantil e que tem muita valia, demonstrando uma preocupação do legislador com as transformações digitais ocorridas e os impactos causados na vida das crianças.

Assim, observando as transformações tecnológicas e sociais, a preocupação sobre os novos modelos de vivências com o elemento chamado tecnologia deve permear todos os sujeitos da sociedade. Conscientizar é um dos pilares da educação digital. Assim, deve-se buscar não só o cumprimento de normas, mas também ensinar a identificar as situações que causam riscos e tornam as pessoas vulneráveis. É ensinar a ter as cautelas necessárias, fazendo uso consciente e dentro dos padrões normativos a que todos os membros da sociedade estão submetidos.

 

Referências:

BRITO, George. Evento alerta sobre exploração de trabalho infantil artístico nas redes sociais. 2020. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/noticia/51832. Acesso em: 28 out. 2020.

DIAS, Guilherme Soares. Youtubers e influenciadores mirins: quando a diversão vira trabalho infantil. 2020. Disponível em: https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/noticias/materias/youtubers-e-influenciadores-mirins-quando-a-diversao-vira-trabalho-infantil/. Acesso em: 28 out. 2020.

NOBRE. Noéli. Projeto obriga redes sociais a fazerem alerta sobre trabalho infantil. Agência Câmara de Notícias. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/698195-projeto-obriga-redes-sociais-a-fazerem-alerta-sobre-trabalho-infantil/. Acesso em: 28 out. 2020.

[1] NOBRE. Noéli. Projeto obriga redes sociais a fazerem alerta sobre trabalho infantil. Agência Câmara de Notícias. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/698195-projeto-obriga-redes-sociais-a-fazerem-alerta-sobre-trabalho-infantil/. Acesso em: 28 out. 2020.

 

Aline Taraziuk Nicodemos

COO - Diretora de operações do PlacaMãe.Org. Mestra em Direito Processual pela UNICAP com ênfase na acessibilidade do Processo Judicial eletrônico brasileiro. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNINASSAU. Professora.

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