05/10/2021 – Processo e tecnologia
Processo Judicial eletrônico: a segurança jurídica processual e os riscos da sociedade da informação

Para ter acesso ao texto integral (livro): https://www.palomamendesaldanha.com/

A versão original deste trabalho foi apresentada à Universidade Católica de Pernambuco, em dezembro de 2016, como dissertação de mestrado. O título original “Processo Judicial eletrônico: A desconstrução do conceito de segurança jurídica e a sociedade da informação” nos leva a pensar e repensar a utilização de sistemas informáticos no Judiciário. Isto porque, a segurança jurídica é um dos fundamentos do sistema processual. Serve como pedra básica para o funcionamento do processo judicial e para a teoria do processo, uma vez que enaltece as funções da tutela jurisdicional e seus objetivos básicos de resolução e composição de interesses. Se é ou não é um dos princípios constitucionais do processo, representa uma questão essencial das discussões sobre o papel da tutela jurisdicional no estado constitucional. Porém, a questão que se pretende discutir aqui não envolve este ponto.

Apesar da imensa dificuldade e, talvez, uma impossibilidade de se chegar a um conceito uniforme e imutável de segurança jurídica, vez que a própria ciência é provisória e descontínua, este instituto transmite ideias básicas: uma, a de estabilidade do ordenamento jurídico e a previsibilidade das consequências das condutas adotadas tanto pelo cidadão quanto pelo Poder Público. Mesmo havendo essa espécie de consenso (estabilidade e previsibilidade), a questão da segurança jurídica está longe de estar livre de problemas, ainda mais em tempos de sociedade da informação e virtualização do processo judicial.

A cultura da cibernética traz inúmeras contribuições para o cidadão na contemporaneidade. Hoje, o homem depende das ferramentas digitais e da rede mundial de computadores para a concretização das mais variadas atividades cotidianas, estando a inclusão digital e o direito ao acesso ao ambiente virtual no patamar de direitos fundamentais. Assim, o fenômeno da virtualização dos procedimentos judiciais (processo eletrônico) surge como algo benéfico, trazendo alguns avanços ao sistema processual, principalmente nas questões da celeridade da tutela jurisdicional e do acesso à justiça (este que deve ser entendido com muitas ressalvas).

Mas, diante das inúmeras ameaças à internet (crackers, espionagem, leaks etc.), o qual pode se chamar de caos virtual, o processo eletrônico deve ser visto ou aceito com um pouco de cautela, uma vez que a transmissão de segurança, ou ao menos a transmissão da sensação de segurança, não pode ser esquecida.  Então, os sistemas projetados e implementados como estão hoje talvez não garantam a estabilidade do ordenamento jurídico, bem como a previsibilidade das consequências das condutas.  É a partir da constatação da existência desses riscos que a dissertação que deu origem a este livro foi construída e possui como problema a seguinte e principal questão: De que maneira o conceito de segurança jurídica é afetado pela implementação do Processo Judicial eletrônico – PJe?

Os riscos da Sociedade da Informação levam a uma análise mais cautelosa sobre o que se conhece por garantir direitos e princípios constitucionais do processo. Itens técnicos e maculados de vício advindos da cibercultura para o meio jurídico terminam por serem considerados estranhos ao ordenamento fazendo com que haja uma desestabilização a partir do momento em que o sistema jurídico já não tem como abranger todos os fatos e possibilidades existentes naquele novo contexto. Assim, baseando-se em conceitos tradicionais, bem como no panorama atual quanto ao sistema oferecido e os riscos técnicos existentes, é possível dizer que o Processo Judicial eletrônico, na forma em que se encontra hoje, não traduz a segurança jurídica esperada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Entretanto, a pesquisa realizada não trata da verificação da existência de segurança técnica ou não do Processo Judicial eletrônico, muito menos da sugestão de melhorias da segurança técnica do sistema. O problema passa pelo conceito da segurança jurídica em tempo de sociedade da informação, levando em consideração, principalmente, os riscos técnicos que envolvem indivíduos e capacidades criadas ou desenvolvidas a partir do crescimento tecnológico. Não se está a falar unicamente de infrações éticas cometidas pelos sujeitos processuais, mas também e principalmente da interferência maliciosa por parte de um terceiro completamente externo e sem interesse na demanda processual.

Assim, é necessário refletir sobre o papel, na sociedade da informação, de alguns valores considerados tradicionais do sistema processual, como o é a segurança jurídica, na sociedade da informação, bem como examinar o processo judicial sob a ótica da pós-modernidade cultural e as novas exigências e ameaças surgidas com a cibercultura. Pois, a construção de plataformas virtuais que abrigam e, consequentemente, dão acesso/trâmite ao processo judicial se torna um trabalho muito mais detalhado que a elaboração de um simples sistema de armazenamento de dados sem qualquer importância ou relevância para a sociedade. Está-se falando de uma plataforma que abriga os dados e informações de processos instaurados na esfera do judiciário brasileiro no intuito de garantir, reparar, declarar (dentre outros) direitos da sociedade e de seus componentes.

Dessa forma, o presente tema, e sua consequente pesquisa, se mostra relevante e de grande importância para o Direito e para a sociedade a partir do momento em que o Judiciário se tornou virtualizado e, assim, a confiança no Poder Judiciário, e nos atos praticados por ele, começa a ser questionada pelo fato da obrigatoriedade da utilização de um sistema de processo judicial eletrônico que apresenta fragilidades de segurança da informação e imprevisibilidade das suas consequências.

A revisão de literatura foi utilizada para definir o conceito de segurança jurídica e ter apoio suficiente para desconstruí-lo, tendo em vista a modificação de contexto. Nesse sentido, esta mesma ferramenta foi essencial para o desenvolvimento teórico da pesquisa empírica com abordagem qualitativa e objetivo exploratório. A pesquisa de campo fez-se presente para demonstrar as falhas de segurança que o sistema apresenta, bem como para comparar o sistema de processo eletrônico objeto da presente pesquisa com outros sistemas localizados em outros Estados, especificamente o Estado do Mato Grosso. Foi imprescindível o estudo interdisciplinar vinculando a área do Direito as áreas da Informática e da Linguística, inclusive para melhor entendimento das informações obtidas por meio da pesquisa de campo realizada não só por visita técnica ao Tribunal do Estado do Mato Grosso (sistemas APOLO e PEA), mas também pela interação com a plataforma do PJe e notícias veiculadas pela mídia.

Sendo assim, estudar as dimensões do conceito de segurança jurídica e seu papel como fundamento e princípio do sistema processual; conhecer o funcionamento de outros sistemas de processos e peticionamento eletrônico para comparar com o PJe; coletar e analisar casos relevantes de falha de segurança técnica em alguns dos sistemas de processo eletrônico existentes no Brasil, com ênfase no PJe; Identificar item de modificação no conceito de segurança jurídica levando em consideração os resultados obtidos nos itens anteriores, são os objetivos específicos que moveram a pesquisa.

E, para o alcance dos objetivos propostos, em um primeiro momento, a pesquisa se fixa na definição da segurança jurídica enquanto princípio e fundamento do sistema processual por entender que esta definição traz à expressão a ideia de ponto inicial e referencial para a atualização de todo o ordenamento jurídico de uma sociedade. Na sequência, serão explorados os mais diversos sentidos da expressão no intuito de fazer a delimitação do conceito a ser trabalhado na presente dissertação. Ou seja, trabalhar as mais diversas concepções da palavra “segurança” vinculada à ideia do “jurídico” ou do “Judiciário” é entender quais as diferenças entre segurança do direito, pelo direito, sob o direito ou por um direito, por exemplo. Tal diferenciação permite uma melhor e mais fácil designação das dimensões que serão utilizadas no contexto deste livro. No primeiro capítulo, também se faz presente uma explanação sucinta sobre como os sistemas jurídicos, common law e civil law, visualizam e aplicam o princípio da Segurança Jurídica dentro dos seus ordenamentos. Ou melhor, como o princípio da segurança jurídica se apresenta nos procedimentos judiciais a partir da interpretação e operacionalidade que cada sistema lhe dá.

O objeto de estudo, aqui já delimitado como o conceito de segurança jurídica atrelado ao processo judicial eletrônico – sistema antes (2016) padrão nacional de processo eletrônico – será trabalhado dentro do contexto da cibercultura e as alterações de padrões provocadas por este momento sociocultural. Alterações estas que não se restringem às atividades cotidianas do ser humano como a realização de um contrato de compra e venda, por exemplo, mas também se referem a alterações ligadas ao modo de pensar e de se comunicar que não mais se satisfaz com uma leitura ou aprendizado linear/simétrico pelo fato da grande quantidade de informações que se encontra disponível no ciberespaço. Assim, o indivíduo termina modificando o seu aprendizado para um estilo hiperlinkado/assimétrico.

Questões como a virtualidade e a realidade estão presentes no segundo capítulo sendo visualizadas a partir do conceito dado pelo senso comum até o entendimento de especialista na área traduzindo a possibilidade do virtual ser real. Isto porque a ausência de estabilidade no âmbito virtual gera questionamentos quanto aos resultados produzidos pela tecnologia propriamente dita. Estes resultados podem ser considerados imprevisíveis quando se está a falar não da cultura hacker, mas daquele indivíduo dotado de grande capacidade e habilidade tecnológica, mas que utiliza a tecnologia de maneira pejorativa – crackers.

Nesse contexto, o ciberespaço pode ser entendido como um território sem qualquer tipo de controle, ou melhor, um campo no qual a liberdade se sobressai sobre qualquer outro direito, chegando a induzir ao entendimento de que qualquer infração às legislações pátrias ficam impossibilitadas de serem punidas, pois o que acontece no meio virtual, no senso comum, não é real. Entretanto, essa ideia comum da virtualidade, de que o ciberespaço é virtual e, portanto, irreal não é a proposta abraçada por este livro. Ao contrário, o presente estudo entende que a cibercultura é revestida de virtualidade e de realidade. Assim, a qualidade do uso das tecnologias, neste livro, passa a ser vista como mais importante que a própria tecnologia. Tal delineamento leva o trabalho, ainda no segundo capítulo, a tentar definir qual a designação mais pertinente para o Direito atrelado a seara tecnológica, passando por expressões como Direito telemático, cibernético, da tecnologia da informação e até informática jurídica, vez que não se está apenas a falar de questões eletrônicas, mas também de tecnologia da comunicação e de itens informáticos que hoje participam do cotidiano do ser humano, logo do Judiciário brasileiro.

A Jurimetria, vista como primeiro elo entre Direito e Tecnologia, é colocada como ponto importante e essencial para entender o entrelaçamento existente entre o pensamento jurídico dogmático, as influências tecnológicas, a segurança jurídica e as novas formas de composição de litígio. Esse item, trabalhado ainda no segundo capítulo, tem o objetivo de demonstrar que a geometrização do Direito, a partir de padrões decisórios dogmáticos, cria uma ilusão de segurança e certeza do Direito, engessando, inclusive, a utilização da legislação vez que a proposta da Jurimetria não dá margem a mais de uma interpretação, mas unicamente a aplicação ipisis litteris da legislação.

E é a partir do desenrolar desse primeiro contato do Direito com a tecnologia, através do sistema da Jurimetria, que o terceiro capítulo adentra na virtualização dos procedimentos judiciais não para as máquinas elaborarem decisões judiciais por conta própria, mas para que o processo judicial aconteça em meio virtual por meio de sistema de processo eletrônico nacional considerado padrão no ano de 2016 – O Processo Judicial eletrônico (PJe). Neste momento são analisados os riscos técnicos da navegação (da sociedade da informação) por meio de estatísticas disponibilizadas pelo Centro de Estudos, Respostas e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil – CERT.Br. Na sequência o capítulo traz casos de falhas de segurança que se tornaram públicos, alguns já devidamente solucionados e outros sem qualquer menção a solução do problema, trazendo apenas indagações sobre a segurança da plataforma.

É importante deixar claro que o estudo realizado não possui como objetivo a exclusão da insegurança jurídica no Processo Judicial eletrônico. Mas aponta para o fato de que todo sistema deve trabalhar e trabalha com um nível aceitável de insegurança tendo em vista as inconstâncias existentes em toda sociedade. Ou seja, a ideia de fazer cessar a insegurança passa pela definição de utopia vez que, por exemplo, a própria legislação brasileira afirma que na falta de segurança na aplicação de uma norma esta deveria ser anulada, mas não o será caso inexista prejuízo para as partes da relação processual. Assim, os atos praticados com erro de forma são reaproveitados por não haver causado qualquer tipo de prejuízo aos sujeitos processuais.

No último capítulo, o trabalho traz um estudo abrangente sobre a atualização de conceitos por alteração de contexto a partir de uma visão linguística. A teoria estruturalista de Saussure é mencionada como ponto inicial das transformações linguísticas, mas é colocada como insuficiente por tentar trazer a ideia da palavra pura, sem qualquer afetação relacionada a fatores externos. Com o pós-estruturalismo é abordada a estrutura lógico-semântica que sai da ideia de pureza e parte para a relação linguagem/realidade entendendo ser necessária a utilização do significado e da referência como parceiros. Os fatos trazem as sentenças que são formadas por símbolos e o seu significado se dará com a descoberta do significado das palavras que compõem a sentença. E é a partir da sentença formada que se deve realizar uma comparação com a realidade no intuito de fazer aparecer uma afirmação quanto a falsidade ou veracidade daquela proposição. Pois esta traz em seu bojo a realidade comunicando um novo sentido por estar diretamente conectada com os fatos de uma sociedade. O capítulo quarto traz, ainda, a virada pragmática, na qual deixou-se de se preocupar com a estrutura abstrata da língua e passaram a se debruçar sobre as manifestações ligadas ao uso direto da língua. É nesse momento que Wittgenstein II se posiciona quanto à designação de um significado a uma determinada expressão ou termo a partir do uso em cada situação.

A teoria da desconstrução de Jacques Derrida é interpretada por este estudo como teoria de maior identificação com o pós-estruturalismo. Isto porque, como ficou demonstrado em todo o trabalho, a desconstrução proposta por Derrida exclui a possibilidade de existência de uma estrutura rígida de significação, abrindo espaço para a ideia da inexistência de uma estrutura, corroborando as ideias de Wittgenstein, e fazendo com que as expressões sejam vistas como conceitos incompletos. Ou seja, desmonta-se o texto escolhido para que sejam visualizadas todas as lacunas e páginas em banco que omitiram ou excluíram alguns pontos que garantiriam uma nova interpretação àquela expressão. Ressalta-se que nesse processo de desmontagem, os conceitos anteriores não serão descartados. Estes serão reaproveitados inclusive como essência primeira daquela expressão.

O quarto capítulo finaliza com a desconstrução do conceito de segurança jurídica a partir da designação da segurança da informação como item a ser absorvido pelo sistema, leia-se sociedade, Estado, Legislação, para que haja a reestabilização dinâmica do ordenamento jurídico brasileiro. Diz-se dinâmica, pelo fato de que a ordem social se encontra em constante modificação e, por este motivo, sempre haverá itens novos e, portanto, estranhos que desestabilizarão o ordenamento jurídico como um todo até que seja devidamente incorporado. Ou seja, a ideia da desconstrução será atrelada, ainda que de maneira rápida e simbólica, ao método fenomenológico por entender que os comportamentos sociais advindos da interação tecnologia/homem. Pois, o ato de utilizar uma capacidade tecnológica de maneira maliciosa, negativa, leva ao questionamento sobre a possibilidade ou não da permanência de determinados conceitos tendo em vista a grande influência da cibercultura em todos os âmbitos da vida humana. São comportamentos, logo atos, que não podem ser negados, que desestabilizam o ordenamento jurídico e, portanto, devem ser absorvidos para que haja uma reestabilização.

Finaliza-se, então, a visualização do panorama necessário para que pudesse, como dito no início, atingir os objetivos propostos e, consequentemente, responder, a partir de uma desconstrução fundada na teoria da desconstrução de Jacques Derrida e, superficialmente, das ideias de conceituação ou significação de Wittgenstein II, à pergunta de partida estipulada.

Dito isto, o estudo proposto é bastante atual por discutir pontos do cotidiano forense em consonância com fatos contemporâneos relacionados à tecnologia da informação com o objetivo de colaborar para um melhor posicionamento da expressão segurança jurídica dentro da teoria geral do processo sob o contexto da sociedade da informação.

Paloma Mendes Saldanha

CEO - Diretora Executiva do PlacaMãe.Org. Doutora em Direito pela UNICAP com ênfase na aplicabilidade da inteligência artificial no Judiciário brasileiro. Mestre em Direito Processual pela UNICAP com ênfase em cybersegurança.

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